Tremor
Cristiano Raimondi
e
Daniel Donato Ribeiro (assistente de curadoria)
Bem vindo a este mapa
embora ele não traga
um acesso a
algo real
—
Marília Garcia
(de cima, em Câmera lenta)
Utilizando a máquina de costura para criar movimentos em linhas que patinam sobre as superfícies de feltro, Guga Szabzon traça, à mão, mapas de impressões sensíveis, sonhos e rememorações. Sua prática é movida pelo desejo de cartografar o curso das diferentes ações que constituem a experiência vivida: da sensação de um fenômeno atmosférico (Ventania, 2022) a paisagens imaginadas (Dois mundos, 2019).
Em seus primeiros trabalhos sobre feltro, de 2016, ela explorava a representação de folhas pautadas de cadernos em que os usos poéticos das palavras e das linhas se uniam na construção de sentido. Nos trabalhos mais recentes, selecionados para sua primeira exposição individual na Millan, as linhas se tornam autônomas, quebradiças e inconstantes; as superfícies ganham maiores dimensões; a palavra desliza para os títulos sugestivos, que por sua vez aludem às situações que a artista deseja mapear (Tremor, 2022). A poética de Guga Szabzon – tanto antes como agora – se dá na lida com as fronteiras entre escrever, costurar e desenhar.
Posicionada no canto da mesa de ateliê da artista, a máquina de costura faz do tremor um estado físico. O gesto controlável e cuidadoso das mãos disputa com a velocidade e o automatismo da máquina, em ato igualmente contingente e reflexivo. A operação impõe um teste de resistência ao corpo na medida em que se alargam as dimensões das placas de feltro e, assim, elas devem ser dobradas, esticadas e recortadas para caberem no pequeno espaço de incisão da agulha.
O tremor também faz menção às brechas, acidentais e intencionais, que irrompem continuamente entre as linhas que coexistem nos trabalhos. Em nenhum deles a impressão sensível se firma com estabilidade: as formas, as palavras e as ações vibram. São como mapas que deixam pairar a incerteza sobre a experiência, porque algo a respeito desta sempre resta fora do campo semântico. Buscam, dessa maneira, desatar as ilusões de univocidade que fascinam nos rótulos, nas definições e nas delimitações. Mas, se por um lado os movimentos e as ações das linhas – ora convulsionadas, ora dotadas de orientação – desapontam as expectativas por uma ordem convencional e prosaica, por outro a aparente desordem encontrada em seu lugar não implica em um mundo anárquico no qual os fenômenos se sucedem ao acaso. Antes, trata-se de deslocamento entre ordens supostamente contrárias: da tensão para a extensão, da forma para o informe e da necessidade para a liberdade.
Esses exercícios cartográficos acomodam todos os tipos de passos em falso. “Você segue em frente. Cai em um buraco. Levanta. Uma bifurcação. Você escolhe a esquerda, volta e aquele caminho não existe mais”, escreve a artista em um de seus cadernos. É nesse caos-cosmos que se estabelece o jogo entre sentido e não senso – assunto frequente, por exemplo, na literatura de Lewis Carroll. Assim, é pela via das inversões e dos deslocamentos, entre estados oníricos (Or Something About Dreams, 2022) e reflexivos (Empena, 2022), ou das pautas de um caderno que se transformam nas coordenadas geográficas do globo terrestre (Mergulho, 2022), que os trabalhos deixam em aberto a possibilidade de perambulação entre várias ordens.
As linhas são elusivas, foliãs e vacilantes; no entanto, podem constituir novelos, tramas, espirais e formas facilmente reconhecíveis. Os movimentos, as figuras e as distinções cromáticas acrescentam e demarcam relações. Por vezes quase caligráficos, os traços alcançam apenas uma significação oblíqua na medida em que contrastam e coexistem uns com os outros. Por isso, o trabalho de Guga Szabzon se exprime tanto pelo movimento das linhas e dos tracejados quanto pelo que está entre eles. Esse procedimento remete às relações entre tecer e escrever, notável nos cadernos da artista que são agora apresentados ao público pela primeira vez. Neles, encontramos relatos de sonhos, escritos poéticos, desenhos, colagens e registros de acontecimentos cotidianos – que informam a obra em feltro, seja formalmente, seja pela recuperação de palavras que darão nome aos trabalhos ou que neles serão diretamente inscritas.
A proximidade entre essas duas práticas é notada por Merleau-Ponty em A linguagem indireta e as vozes do silêncio, ao afirmar que “(...) como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem, e é assim que de repente se encontra rodeado de sentido”. No fiar, bem como no escrever, trabalhar pelo verso aponta para um procedimento de tatear signos constituídos, linhas e palavras, para encontrar neles uma nova expressão e, assim, dar-lhes uma nova vida na linguagem. O sentido alcançado é sempre indireto, porque resulta de arranjo e combinação. No caso de Guga Szabzon, a escrita e a costura podem ainda ser pensadas em termos geográficos: os traços formam curvas, montanhas, caminhos; e as superfícies são acidentadas, porosas e cheias de fios soltos: o feltro, material que permite que a costura penetre profundamente sem interferência das urdiduras e das tramas como em tecidos convencionais.
Esses mapas não são comensuráveis a um espaço real, mas tampouco restam no indistinto. A palmeira sugestiva de uma paisagem (Neblina, 2022) ou a bandeirola, indicando a velocidade e a direção dos ventos (Âncora, 2022) dão suporte nessa encruzilhada, apenas para em seguida encontrarem o limite de cedência e, assim, a cena volta a se fragmentar. Os rochedos se estilhaçam em tracejados, as montanhas desmoronam e os caminhos oscilam. Os pontos de apoio cedem, na expectativa de que, por via das dúvidas, dos deslocamentos e das minúcias da experiência, essas cartas possam indicar uma nova forma de ver o todo.