Dia e noite, ainda é longe?
Diego Matos



Na impossibilidade das palavras,
na palavra não dita
que asfixia,
eu me encontro

— Paul Auster




De sobrevoo, o lugar da iminência é o ponto de partida, a chegada, a rota e o desvio da produção artística de Guga Szabzon. Em sua maioria, os trabalhos agora expostos ensejam uma aguda vontade de arranjo que se contrapõe de forma intermitente, mas continuada, à uma aposta no risco que está na dança das formas e das cores, das matérias e das geometrias, dos impulsos e desejos, das reflexões e dos sonhos. É o reflexo de um trabalho solitário, amparado no cotidiano da artista, que se vive no presente, no restauro do passado e na vida onírica e política que entrelaça tempos.

A iminência, portanto, é um porvir da dúvida, um limiar da transformação e da decantação ou a identificação de um limite. E claro, na situação de cada trabalho, é eventualmente um momento afirmado como equilíbrio no plano horizontal de confecção da obra que, em suspenso na parede, como retrato ou paisagem, alça um movimento aos olhos de quem a vê, a percebe novamente ou retorna para um outro vislumbre. Do olhar, imaginam-se formas, corpos, contatos, mapas, cidades, astros, sistemas complexos, estradas, trilhas, distâncias, proximidades em tempo ou espaço, cabeça, membro, fluxos, entre tantas coisas quase possíveis.

O trabalho de Guga Szabzon é uma costura contínua e afetiva da sua memória em construção. Se há um lastro imediato de passado, cada obra engendra um trajeto para o futuro, um movimento contínuo de não retorno, quase como um tempo aiônico no encontro com os sentidos. Memória entendida não apenas como um repositório de repertórios e vivências, mas como um oráculo precioso que se afirma no ciclo cotidiano, do dia à noite, da noite ao dia; uma travessia diária sem caminho de volta.

De dia, a rotina e a disciplina do ateliê e de seu ofício: lugar da reflexão, da experimentação e do labor. Do caderno à mesa de costura, a artista anota e traça na escala do papel ou, com esforço físico disciplinado, maneja o feltro, o tecido em algodão, as linhas e a máquina de costura, bordando, construindo, determinando incisões, costurando laços, estabelecendo interrupções, retas, curvas, geometrias multifacetadas. Em um dado momento, passadas horas, recomeça, tensionando sempre o limite do corpo. Há também neste lugar o tempo da leitura atravessada, da lembrança anotada ou do processo analítico.

De noite, o recolhimento, a leitura e o sonho em casa. Aqui, a leitura se prolonga, a palavra ganha presença, os afetos se comungam e os sonhos tornam-se dominantes. Há também espaço para uma observação astrológica ou uma informação científica, assim como uma comunicação diária com qualquer outro, contato por palavra ou gesto. Entretanto, talvez seja o sonho o ambiente mobilizador da artista. Dele podem derivar palavras e formas que, em certo sentido, demarcam intenções em cada peça trabalhada.

A artista configura uma ou muitas geografias em suas peças. Cada uma enseja um movimento de aproximação e/ou distanciamento que vai das entranhas da costura, do ranho entre linha e feltro e chega em uma perspectiva externa que supõe um possível todo, um todo que não se confirma. Pode ser uma mirada com uma lupa ou microscópio, pode ser a visão telescópica ou de um satélite. Entretanto, se a imagem na ciência confirma uma forma, uma informação, o trabalho de Guga nada nos confirma, mas insinua trajetos, permeabilidade, interdições e o entre espaço da possiblidade. Os confins de cada cruzamento ou de cada curva dos traçados observados em seus bidimensionais tecem uma gama de possíveis caminhos e descaminhos.

Talvez deambular seja o termo que melhor caracteriza está ideia de movimento que se apresenta em cada ciclo de trabalho da artista. É o movimento análogo à tessitura musical, uma composição que se afirma no fazer e na execução, pertinentes ao labor diário da artista. Aliás, é um movimento que marca o encontro de duas palavras homônimas: tessitura enquanto composição, tecitura enquanto arranjo em tecido e costura. Sugiro, assim, como exercício possível, vislumbrar o que se interpõe em obras como Encarar, Lampejo e Mapa do céu. Todas elas presentes nesta exposição são deambulações que se configuram em partituras da vida interior da artista posta ao mundo.

Se preenchêssemos os espaços que habitam cada peça de feltro costurada poderíamos talvez vislumbrar uma aproximação com o que alguns artistas da primeira metade do século XX fizeram. Dando amplitude imaginativa, o trabalho de Szabzon me faz pensar numa raiz que eventualmente tangencia um lugar situado um pouco nas expressões cubistas e abstratas, como suas derivações, e um pouco na matriz construtiva da arte. Posso até forçar um pouco mais e dizer que há alguma proximidade com os trabalhos construtivos de Judith Lauand e Ivan Serpa ou mesmo nas pinturas desinibidas de Le Corbusier. Porém, a artista nos confronta essa percepção nas próprias geometrias indeterminadas que se afirmam em suas produções.

Portanto, tendo em vista analogias e metáforas possíveis em consonância com outras produções poéticas, pode ser mais pertinente falarmos de referências e paralelos com produções que estão na margem da tradição plástica. Em uma das conversas entre artista e curador surgiram menções literárias e cinematográficas. E aqui, destaco o filme ensaio “Viajo porque preciso, volto porque te amo” (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Nele, o personagem que no filme não ganha feição realiza uma jornada com duplo valor escalar: um roteiro físico pela imensidão do sertão nordestino e um atravessamento interior de dor, luto e reinvenção. Nesses caminhos sem o conforto da volta - pautados pelo assombro, o medo, a solidão e a descoberta - não há lugar de chegada ou um fim.

Analogamente, desta dupla jornada, dia e noite, Guga Szabzon nutre as contingências de sua prática poética, onde dito e visto podem eventualmente coincidir. Se no filme há o salto em Acapulco ou na beira do Rio São Francisco, nos trabalhos de Szabzon há um salto ou corte que liberta e gera impulso; algo da ordem do indizível. Por isso, na busca atormentada da significação, fica inevitável lançar a pergunta: ainda é longe?

***

Por dois meses, ao longo da construção dialógica entre a artista e o curador, a palavra ganhou possiblidade, tornando-se um léxico precioso. A constelação formulada pela reunião de palavras e signos apresentada adiante operam como um amparo diante de um corte, um salto ou uma ruptura, todos invariavelmente inevitáveis. Importante dizer que, de maneira apenas complementar, as palavras não substituem ou definem a natureza da obra plástica. Ademais, cada trabalho da Guga é titulado, o que oferece mais uma camada de significação, amplificando com ironia ou metáfora o universo de cada obra sozinha ou em relação às demais. Por isso, palavra por palavra posta a seguir constitui um fio tecido pela memória e pelo impulso da artista.

Análogo ao que Paul Auster escreve em seu poema Interior, a artista encontra no caminho das matérias em composição um lugar que não habita a palavra em si, um lugar que desencarnou desse léxico. É um território além, de confluência, em que pode haver queda, destruição e explosão, mas há também a iminência das formas, dos arranjos e de novos imaginários. A aventura da travessia está posta.

 

¹ Trecho final do poema Interior, do escritor Paul Auster, encontra-se na seção Escritos na parede da publicação: AUSTER, Paul. Todos os poemas/ Paul Auster (tradução e prefácio Caetano W. Galindo). São Paulo: Companhia das Letras, 2013.